A Herança do Mourão

Quando o Rodolpho Mourão começou a namorar minha prima Eunice Josefa de Sousa, eu era a “vela”. Eles ficavam um em cada canto do alpendre, eu tinha seis anos e era obrigado a ficar no meio dos dois, quietinho, tomando conta. Naquele tempo era assim. Só trinta dias depois do início do namoro é que podia pegar na mão. Mais um tempo, e era permitido passar o braço em cima do ombro. Beijar só um ano depois.

O “tio” Mourão sempre foi muito esperto, bom de negócio. Ele tirava uma pratinha e falava assim: “Vai lá na pracinha, no bar do Vandinho, compra picolé e dá umas voltas”. E eu ia. Quando voltava, minha tia avó Maricota descobria. Ela era brava e falava: “menino, você não tem juízo, vai apanhar”. E a minha outra tia avó, Adigina, mais calma, intercedia: “não, Maricota, você é que não tem juízo. Esse menino não tem idade para saber o que ele está fazendo”. Essa intervenção me evitava umas boas chineladas.

Passado o tempo, na época certa, em 1943, o Mourão se casou. Ele já era fazendeiro, trabalhava muito, começou a progredir, comprou uma casa muito boa na cidade, uma fazenda, caminhonete. Mas entrou no negócio do zebu, uma raça hindu de boi muito bonita, que fez uma fama danada no Brasil e quebrou muito fazendeiro. Inclusive o Mourão. Para se ter uma idéia, um boi zebu custava 100 mil, quando um boi comum era 100 “mirréis”.

Um dia, em Uberaba, perguntaram ao então presidente Vargas, que era um grande criador de gado, quanto valia um boi zebu. O presidente respondeu: “pelo que eu sei, um boi sempre vale A Herança do Mourão, Dr. Fernando Soares* Rodolpho de Oliveira Mourão (16/08/1917 – 06/01/2004), foi o primeiro Diretor de Laticínios da Cooperativa de Produção de Leite (de 1965 a 1971) e Presidente da Cooperativa por quatro mandatos (de 1971 a 1983) o peso que dá no guincho depois de morto. É o preço da carne”. E isso acabou com o negócio, desvalorizou tudo. O Getúlio ficou com pena e resolveu ajudar os fazendeiros, inventou uma tal moratória, o governo pagava um tanto, o fazendeiro pagava muito pouco e tal. Mas com o Mourão não teve disso. No dia seguinte, ele começou a vender a fazenda, a caminhonete, a casa onde ele morava. Ficou sem nada e foi trabalhar como capataz na fazenda do Ministro da Justiça, Francisco Campos, em Pompéu. Por lá, ele ficou muito tempo, melhorou de vida outra vez e, já sem dívida nenhuma, voltou a Abaeté e começou a negociar de novo. Esse gesto do Mourão foi o único em toda a região.

O Mourão realmente tinha a confiança do povo, tinha credibilidade. Ele falava muito pouco, mas quando falava, o povo acreditava. Ele não passava fuchico. Gostava de aparecer muito pouco, ficava sempre à noite em casa vendo televisão, torcendo pelo Fluminense e pelo Abaeté Atlético Clube, onde jogou como lateral direito durante uns 20 anos. E onde ele se machucou, num jogo contra o Atlético Mineiro, e teve um problema muito grave na coluna.

A partida foi em Abaeté. O Mourão era apaixonado pelo futebol e recebeu um drible fabuloso do ponta esquerda do Galo, Nívio. O jogador saiu correndo, o Mourão disparou atrás, caiu, entortou a espinha, teve que ser operado duas ou três vezes, e nunca mais consertou a espinha direita. O engraçado é que, quando o Mourão caiu, o Nívio falou: “O moço, por que você faz isso? Fica correndo igual vaca brava. Eu larguei a bola lá atrás. Eu tô correndo e você correndo atrás de mim…” E tinha sido assim mesmo…

O Mourão não era político, mas foi vice-prefeito durante quatro anos. Foi o melhor vice-prefeito de Abaeté, não enchia o saco de ninguém, só trabalhava. Oito anos depois, ele teve uma surpresa. Apareceu outro vice-prefeito tão bom quanto ele: cumpria a obrigação e não aborrecia ninguém. Era o Paulo Andrade. Então, se houvesse uma eleição do melhor vice-prefeito que Abaeté já teve, daria empate entre o Mourão e o Paulo Andrade. Os dois foram ótimos.

No enterro do Mourão, houve um incidente: não coube o tanto de parente e amigo importante que veio se despedir dele. E ali estava, principalmente, aquele povo que tanto gostava dele e de quem ele tanto gostava, que é o que ele foi a vida inteira: um típico fazendeiro.

Todos aqueles fazendeiros que estavam lá são como era o Mourão: gostam de ouvir a melodia do leite puxado da mama da vaca batendo no balde. Gostam de ouvir o barulho do balde cheio sendo virado na braúna. Gostam de ouvir as braúnas viradas no tanquinho. E o leite do tanquinho enchendo aquele carretão. Aquela turma que estava lá gosta do cheiro da grama molhada depois que cai a primeira chuva depois da estiagem. Esse é o cheiro da vida. Eles gostam mais desse cheiro do que de um perfume de mulher. Ver aquele pasto seco rebrotando, o verde crescendo, é a alegria do fazendeiro.

Os fazendeiros gostam muito de ver o ipê amarelo florindo, como uma mensagem de Deus, a dizer: “ainda gosto de vocês”. O amarelo vem primeiro, depois vem o roxo. E os dois têm uma característica em comum, eles jogam as flores na poeira. Eles dão flores, ficam bonitos e secam antes de chover. Apenas anunciam: “Deus vai mandar chuva”.

Todos os fazendeiros que estavam ali gostam de plantar, gostam de ver o milho virando espiga. Quando uma espiga aparece de repente, todos os fazendeiros levam a mão e apertam para ver se ali tem milho. Eles gostam muito de ver o soro, gostam de ver o arroz dando cacho, as flores aparecendo em setembro. Todo fazendeiro é louco por uma rosa vermelha, porque é a mais bonita. Assim era o Mourão.

Tem uma outra coisa. Junto com o Dr. José de Melo Campos e o Osvaldo Luiz de Oliveira, o Mourão deixou para os fazendeiros e o povo de Abaeté uma grande herança: a Vaquinha. E deixou uma tarefa: não deixem essa Vaquinha se enfraquecer. É preciso dar as mãos e conversar, para que os cooperados continuem donos do seu próprio leite. Se um dia a Cooperativa acabar, essas empresas que estão aí pagando um preço até melhor que a Itambé põem um pé no pescoço dos produtores e pagam o que quiserem. Os produtores não podem perder o direito de gerir a si próprios.

Outra herança do Mourão foi o seu exemplo, algo que falta muito em Abaeté e no mundo inteiro: a honra. O Mourão viveu e morreu com honra. Ele atravessou nevasca, chuva, tempestade, tufão, ciclone. Mas também teve momentos de vida muito boa. Ele voou em ares de brigadeiro. E navegou em mar de almirante.

*Publicado na edição do Jornal Cooperabaeté em Janeiro de 2004.

Por: Dr. Fernando Soares (in memoriam)

Publicado por: Renato Alves

📰✨ Jornalista, editora do jornal Cooperabaeté desde setembro de 1998. 🗞️🖊️

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Isso vai fechar em 20 segundos

× Atendimento online