“A história humana não se desenvolve apenas em amplas batalhas e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas…” Ferreira Gullar
João Ferreira de Sousa, João do Retiro, era dinâmico, antenado, amante do progresso, exigente com as pessoas à sua volta. Era inovador e empreendedor. Amigo sincero e honesto. Casou-se aos vinte e dois anos, quando iniciou a formação de uma grande família.
D. Florinda de Paula Assis, a esposa, foi sempre seu porto seguro. Moça prendada, filha de um vizinho de fazenda, Florinda conheceu João aos 15 anos, mas não se encantou pelo rapaz. Achou o cavalo mais bonito que o dono. E quando o encontrou pela segunda vez foi para se casar com ele, em 30 de julho de 1907. Foram morar na fazenda.
Simplesmente Fazenda.
Localizada numa região plana, muito bonita, de terras férteis e abundantes em água, propícia à plantação de cana, milho, café e ideal para a criação de gado leiteiro. Um local dos sonhos. Muitos ali realizados. O paraíso dos filhos e um doce espaço para muitos netos. Assim era a Fazenda…
Distante 7 km de Abaeté, margeada pela estrada Abaeté-Quartel Geral, a aproximadamente 200 metros do trevo de Cedro do Abaeté, à esquerda ficava a casa sede da Fazenda.
Simplesmente Fazenda…
Era como todos se referiam a ela. Sem grandes elevações, ao longe se avistava a cerca da frente da casa. Uma cerca baixa, de madeira, contornando um pátio cimentado com um murinho de 50 centímetros, onde os filhos, visitantes e camaradas passavam tardes frescas e encantadas.
No pátio, se ouvia música de sanfona ou violão e contavam-se casos. Ou apenas se aguardava a vez de entrar na sala de visitas e resolver problemas com o Sô João, ou ainda receber dele o salário.
Sobressaiam neste pátio dois pés de jasmim que perfumavam o ambiente, um pé de laranjas lisas, um pé de magnólia e um pé de sempre lustrosa. Também no pátio havia dois tanques, à esquerda da porta da sala ou porta principal, que eram usados para a higiene dos pés e das mãos antes de se ter acesso ao interior da casa grande.
A casa grande. Construída conforme a arquitetura da época: paredes altas, teto forrado com esteira, cômodos grandes, piso assoalhado em madeira, janelas e as portas confeccionadas em madeira de lei.
Um quintal enorme com árvores frutíferas era banhado por três regos d’água. Mais distante, um poção com águas profundas, límpidas e transparentes testemunhava as aventuras das crianças e dos jovens. Nele, longe dos olhos dos pais, os filhos do casal faziam suas peripécias, uns aprendiam a nadar outros não. Alguns se afogavam e eram salvos pelos irmãos.
Muitos cômodos compunham a casa. A sala de visitas, espaçosa, mobiliada com sofá e duas cadeiras com assento e encosto em palhinha. Ao centro, uma mesa redonda. À direita da porta principal, no canto, ficava a escrivaninha, onde vovô João fazia toda a sua escrita e as anotações do movimento da fazenda.
As paredes laterais da sala possuíam, cada uma delas, uma porta para dois quartos. O quarto que ficava à direita destinava-se aos hóspedes mais cerimoniosos. O outro à esquerda, número 2, era destinado às pessoas da família, de caráter mais íntimo, que passavam temporadas na fazenda. Ligando a sala de visitas à sala de jantar, um corredor de aspecto assombreado, pois nenhum quarto abria-lhe as portas, embora houvesse esta possibilidade.
A sala de jantar era enorme, com paredes recortadas por portas de mais quatro quartos e uma porta de acesso a cozinha. Na sala de jantar, ficavam alguns objetos inusitados. Uma rede sempre pronta para o balanço. Um banco, uma pia com água encanada, um armário embutido, onde vovó Florinda guardava os remédios. Ficava sempre trancado para que as crianças não mexessem, pois naquela época já havia crianças levadas.
Fixado à parede, imponente, além de seu tempo o telefone. Conforme a quantidade de toques, comunicava-se com a fazenda Retiro, com a casa do Zicão ou com a casa do Chico Cocão.
Ocupando outra parede, o guarda louça. Além das louças mais finas, guardava também geleias, compotas e outras guloseimas feitas pelas prendadas mãos de D. Florinda.
No centro da sala, circundada por oito cadeiras, reinava a grande mesa. Não havia toalha que a cobrisse ponta a ponta. Assim, as toalhas usadas tinham colchetes para acrescentar partes de renda ou de outro tecido, com intuito de cobri-la por inteiro. Foi esta a inteligente solução que vovó encontrou.
Através de uma escada descia-se à cozinha. Espaçosa. Paredes altas, chão batido. Com mesa de madeira, bancos em volta, um fogão a lenha com seis bocas e onde o fogo não apagava em nenhum momento. Em noites frias, seu assento azulejado era sempre disputado pelas crianças.
Nesta cozinha, duas portas, uma de cada lado, conduziam a regos d’água, cujas serventias diversificavam-se. Um servia para lavar vasilhas e aguar a horta. O outro para receber e levar para longe os dejetos da casinha da privada – ele passava sob a casinha.
Ainda outra porta levava à dispensa, onde grandes tuias armazenavam os mantimentos. Prateleiras em todas as paredes ficavam cobertas por queijos e rapaduras. Deste quarto de dispensa, descia-se alguns degraus e havia o cômodo de banho com água encanada e serpentina, o que a tornava quentinha.
A luz, provinda de um gerador movido a água, era o que mais motivava as constantes visitas de pessoas à Fazenda, para apreciar os feitos de vovô João e se fartar das deliciosas guloseimas de vovó Florinda. As irmãs de vovô João diziam: “As coisas de João parecem do capeta. Na Fazenda, a luz acende sem querosene e nem pavio”.
Mais parecia uma cidade aquele local, tal o movimento. As lavouras, o gado, o engenho de madeira puxado por bois, a confecção de polvilho e mandioca, na roda de madeira. O engenho grande e o poderoso monjolo movido a água, que corria em abundância na bica vinda do volumoso açude.
Os filhos eram muitos, dezessete, ajudavam um pouco. Os empregados eram mais, porque o movimento da Fazenda era enorme.
O feijão colhido na roça era guardado na tuia. Para conservá-lo, nada de produtos químicos. D. Florinda o “curava” com banha ou com terra. O arroz colhido e pilado. O milho servia para o assado, para o mingau, a pamonha, o angu e os bolos e biscoitos e até para a farinha.
Da mandioca também tiravam a farinha e o polvilho, da cana a rapadura, o melado e a cachaça. Esta feita pela velha alquimia através da fermentação, destilação, envelhecimento por processos naturais. Enfim, fabricada com cuidados artesanais.
O café também se plantava. Depois de seco e torrado, era moído para o consumo. A carne proveniente do gado, dos porcos, ou de aves criadas ali. Para o cozimento de todo e qualquer alimento, usava-se banha ou gordura de porco.
Verduras e frutas em profusão vinham da horta e do pomar do quintal. Somente o sal e o querosene eram comprados na cidade. Os doces caseiros eram feitos conforme a colheita das frutas: de cidra, de goiaba, de banana, de laranja, de mamão e muitas mais. Uma época de estações acentuadas e mais equilibradas do que hoje em dia proporcionava planejamento das atividades.
Além de porcos, gado leiteiro, cavalos e aves, a criação de ovelhas, cabritos também faziam parte da vida na Fazenda.
O azeite extraído da mamona era utilizado para untar as correias e “peias” de vacas, as juntas dos carros de bois e tudo que de lubrificação necessitasse.
Casa grande, casas menores, casa de engenho, de picar cana, dos boiadeiros, de guardar café, do moinho, e até do gerador. A coberta de tirar leite possuía, anexada a ela, um cômodo para abrigar os bezerrinhos e para guardar arreios.
Conjugado ao paiol, havia uma sala que servia como sala de aula. Equipada com lousa, carteiras, tudo providenciado por vovô João. Aí foram alfabetizados alguns dos filhos do casal e os filhos dos agregados. Eram contratadas professoras e também os dentistas Sr. Atabalipa e Sr. Santinho, que compareciam à Fazenda sempre que necessário.
Além das casas com serventias diversas, havia mais casas onde moravam as famílias dos camaradas. Mais parecia uma pequena cidade. Formavam o chamado ruado, onde moravam os trabalhadores que desfrutavam da companhia, da confiança, das festas, enfim da vida daquele lugar. Muito contribuíram com seu serviço, sua amizade e sua consideração para com a família. Totalizavam umas quinze casas no local.
Foi neste pedacinho de céu que os filhos e muitos netos nasceram e viveram muitos momentos de alegria e chegaram bem perto da felicidade.
Com a partida de Vovô João, as coisas mudaram. As terras foram partilhadas com os 17 filhos, que, criados de forma benevolente e diante das transformações do mundo, venderam-nas quinhão por quinhão…
Hoje, a Fazenda está dividida e tem mais de vinte proprietários. Entre eles, os descendentes de Lamounier, de Sr Aguinaldo Andrade, de Dr. Guido, de Osvaldir de Paula e ainda Dr Orestes, Newton Lino, Lourimar César, Enzimar César, Madalena Soares, Vargas, Betinho e outros.
Já não se ouvem mais as batidas do monjolo, fonte poderosa de fartura dos longínquos tempos. Os bois não giram mais aquele engenho e o açúcar ficou amargo de saudade. Já não vibram mais pelo interior da vivenda os risos dos que ali viveram e lutaram por aquelas terras.
Abandono e tristeza jogaram a casa grande no chão. Um lugar que abrigou uma enorme família e lhe deu o sustento e a fartura de outrora… Permanece apenas na memória, pois quem a conheceu nunca dela poderá se esquecer.
Dos 17 filhos do casal sobreviveram 110 netos, 250 bisnetos, 260 trinetos e 40 tetranetos, formando uma das maiores famílias do Centro Oeste de Minas Gerais. Seus descendentes ocupam as mais variadas profissões e buscam realizações pessoais e profissionais.
Muitos não conheceram Sr. João e nem D. Florinda, mas têm certeza de que sua energia permanece e faz brotar em nossos corações tributos de respeito, carinho e amor.
(Resumo do 4º Capítulo do livro Simplesmente Fazenda, de Silvana de Sousa Lino)
Publicado por: Renato Alves